Coletânea

sexta-feira, abril 13, 2007

 

SHOW DE HORRORES

(O apresentador entra correndo e sorrindo no palco. Música de abertura.)

- Senhoras e senhores! Bem-vindos ao nosso SHOOOOW DE HORROOOREEEES!

(Aplausos entusiasmados. O apresentador espera pacientemente o ruído baixar, ainda sorrindo. Encaminha-se para seu posto no canto direito do palco.)

- Boa-noite, amigos da platéia!

- Boa-noiteeeeee!


- Que platéia maravilhosa temos aqui hoje! São estudantes universitários de teologia e ciências da religião, vindos de todos os cantos do país. Obrigado pela presença! A participação de vocês no Show de Horrores é fundamental! Como sabem, vocês têm o poder das multidões: aprovar ou desaprovar o que será dito no palco.

(Barulho ensurdecedor. O apresentador espera.)

- Para quem ainda não conhece o programa, o Show de Horrores tem como símbolo o monstro Frankenstein. (Mostra no canto oposto um boneco gigante cheio de escaras e cicatrizes.) A cada semana, promovemos uma competição ao vivo entre profissionais da área acadêmica. O ganhador é aquele que demonstrar a maior discrepância, a maior incoerência, a maior esquizofrenia entre suas idéias e sua vida!

(Aplausos e urros.)

- O tema de hoje é: Bíblia. (Um letreiro brilha acima dele.) Os profissionais que se inscreveram para esta competição são professores de seminários protestantes que também têm cargos de liderança em suas igrejas. Todos eles cumprem essa jornada dupla: ensinam a futuros pastores e pregam na igreja, orando em público e cuidando de suas ovelhas. Veremos o quanto são capazes de assumir posições conflitantes nas duas funções. Recebam agora nossos candidatos!

(Aplausos. Entram os professores de seminários, alguns tímidos, outros gesticulando animados para a platéia, com suas Bíblias debaixo do braço. Já instalados no canto oposto do palco, os jurados do programa colocam seus óculos e abrem suas pastas. Um deles pede ao apresentador para fazer uma observação sob a forma de pergunta.)

- Os professores costumam fornecer aos estudantes a base teórica do conteúdo veiculado em sala de aula?

(O apresentador parece confuso, e pede a um dos professores que responda. Antes de se levantar, o professor menos tímido olha para os demais colegas, certificando-se de que a resposta é unânime.)

- Não costumamos fazer isso.

- Ótimo. (O jurado parece satisfeito.) Excelente dado para a esquizofrenia.

(Todos parecem contentes, e o apresentador decide começar a competição.)

- Vocês sabem as regras: os estudantes fazem uma pergunta para cada professor. Se a resposta não for suficiente, o estudante pode fazer ainda mais uma para complementar. E não se esqueçam: ganha quem demonstrar mais esquizofrenia entre idéia e vida, teoria e prática!

(Candidatos e jurados assentem, ansiosos. O primeiro estudante se adianta.)

- Professor, quais as diferenças entre o que o senhor diz em sala de aula e o que o senhor ensina na igreja?

(O candidato sorri.)

- Na igreja, eu sou confessional e ensino a Bíblia como a Palavra de Deus. No seminário, sou acadêmico, científico, crítico. Posso questionar tudo que preguei na igreja, inclusive se a Bíblia é mesmo a Palavra de Deus.

(Ovação. O professor une as mãos em sinal de vitória. Satisfeito, o estudante retorna a seu lugar. Outro toma a palavra e se dirige ao segundo professor.)

- Professor, a Bíblia é um relato histórico?

(O candidato olha para cima e pensa um pouco antes de entoar:)


- De Crônicas pra trás é tudo invenção deutoronomista; nada daquilo aconteceu. Abraão, Isaac e Jacó não são pessoas reais, mas variantes da mesma história: personagens, “tipos”.


-
E depois de Crônicas?

- Depois de Crônicas, na Bíblia inteira, há uma mistura de fatos e ficção. O povo precisava de relatos fantasiosos para fundar seu “mito” de grande nação, para os judeus, e fortalecer sua fé, para judeus e cristãos.

(O estudante parece decepcionado, mas não pode acrescentar perguntas. Os demais professores mostram sinais de impaciência, como se prestes a dizer algo. O apresentador percebe.)


- Se algum estudante tiver uma pergunta do mesmo teor, será bem-vinda.


(Um dos estudantes pula em meio aos outros, na platéia.)


- Eu tenho! Professor, os milagres da Bíblia são reais?


(O terceiro professor, depois de lançar um olhar irritado ao colega que acabara de falar, ergue a voz em um tom mal-humorado.)


- É claro que não. Não existem milagres, todo mundo sabe disso. Quem acredita em milagre hoje em dia, na era da eletricidade e da informática? (Os demais professores assentem com a cabeça, em concordância unânime.) Agora, eu gostaria de pedir ao nosso apresentador a permissão para fazer um adendo ao que o nobre colega declarou sobre o Antigo Testamento. (Dirige ao apresentador uma expressão suplicante e recebe a permissão.) O nobre colega colocou o Antigo e o Novo Testamentos no mesmo nível. Só que todo mundo sabe que o Antigo Testamento fala de um Deus cruel que mandava em um povo que vivia massacrando outros povos! Nosso cristianismo atual não tem nada a ver com o Antigo Testamento! (Seu rosto se ilumina.) Mas na igreja não dizemos isso, claro. A Bíblia é uma só e os fiéis são orientados a ler o AT e o NT na mesma perspectiva revelacional, como Palavra de Deus.


- Mas para o senhor o Novo Testamento é Palavra de Deus e o Velho Testamento não? É isso?

- Esse termo, “Palavra de Deus”, é muito controverso no seminário. Veja: o povo das épocas bíblicas era mais simples, mais atrasado; vivia numa mentalidade mitológica. A Bíblia é cheia de mitos criados pelo homem. Mas, se até hoje a mitologia tem o poder de ajudar as pessoas, viva a mitologia!

(Os jurados mostram-se impressionados. Os estudantes aclamam: “Já ganhou! Já ganhou!” Mais discreto que o primeiro, o terceiro professor volta a seu lugar. Mais um estudante se levanta.)


- Professor, minha pergunta é sobre o mesmo assunto. Se o Deus do Antigo Testamento não é o mesmo do Novo, como é que Jesus declara “não vim para revogar a lei, mas para cumprir”?


(O quarto professor assume um ar de autoridade.)


- Como você sabe se Jesus disse mesmo isso? (Sorri.) No seminário, sempre questionamos o texto bíblico como verdadeiro.


-
E na igreja?

- Na igreja não, meu caro. É obrigação do pregador colocar-se dentro do contexto apresentado pela Bíblia para falar das verdades de Deus. Em cada contexto, uma verdade, que é sempre uma construção humana. Afinal, todos sabemos que não existe verdade absoluta.

(Um murmúrio de admiração vem da bancada dos jurados. Um comenta baixinho: “Uma contradição flagrante na mesma resposta! Esse candidato é muito bom.” Os estudantes permanecem em silêncio, ansiosos pela continuação.)


- Agora, respondendo a sua pergunta. Meu pensamento difere ligeiramente do pensamento do colega que falou antes de mim. Vejo claramente uma fantástica identidade entre o AT e o NT: os profetas do AT eram revolucionários que se insurgiram contra a ordem social de sua época, tal como Jesus. Eles pregaram a revolução! Da forma particular de cada um deles, claro. O povo egípcio foi a classe dominante que oprimiu os judeus durante quase um século. Jesus exaltou os pobres e condenou as elites judaicas e romanas da época. Por isso, os relatos fantasiosos de fé e as mitologias serviam tanto para engrandecer a nação oprimida, quanto para fortalecer a igreja perseguida do Novo Testamento.


(Um dos jurados ergue a mão. O apresentador lhe passa a palavra.)


- Gostaria apenas de precisar a origem histórica dessa idéia.
(Ele consulta a pastinha.) A divisão da sociedade em duas classes inimigas foi elaborada por Karl Marx e atribuída ao cristianismo pelo movimento da Teologia da Libertação. Posso fazer a segunda pergunta ao candidato? O estudante não chegou a fazer exatamente uma segunda pergunta. (O estudante dá de ombros, concordando.) Os professores do seminário costumam falar abertamente de Marx e da Teologia da Libertação?

- Não, claro que não. Seríamos acusados de doutrinação! Política e teologia não se misturam. Não em sala de aula.

- Mas vocês lêem Marx, certo? A base do que você está dizendo é marxista.

- A base do ensino no seminário assume fortes colorações marxistas, mas jamais falamos dele. Preferimos ficar nas generalidades da opressão e da crítica ao capitalismo. Marx era ateu e odiava o cristianismo, você sabe. Pega mal.

- Obrigado!

(O quarto professor é tão aclamado quanto o primeiro. O apresentador intervém.)


- Como vêem, senhoras e senhores, a competição desta noite está acirrada! Temos quatro fortíssimos candidatos ao troféu Frankestein de hoje! Na modalidade Horrores, a Bíblia se encontra toda fragmentada: é uma na igreja, outra no seminário; inteira na igreja, dividida ao meio no seminário; Palavra de Deus na igreja, coleção de mitologias no seminário; confessional na igreja, marxista no seminário! Veremos então qual dos cinco candidatos encarna melhor essa fragmentação! A última pergunta, por favor.


(Levanta-se um estudante, visivelmente nervoso.)


- Acho que minha pergunta é meio repetitiva. Tem a ver com milagres também.


(O apresentador o encoraja com um gesto, e o estudante toma coragem.)


- Eu só queria saber se o professor concorda que Jesus ressuscitou.


(Todos os professores se entreolham. O último candidato limpa a garganta.)


- Bom... Se você mostrar o relato bíblico da ressurreição de Jesus aos professores de seminário, a maioria irá dizer que se trata de uma mitologia. Acho que já fomos suficientemente claros sobre esse assunto... A Bíblia é cheia de mitos.


- Mas a ressurreição de Jesus é central para a fé cristã! O apóstolo Paulo diz que, se Jesus não ressuscitou, o melhor é deixar tudo pra lá: “comamos e bebamos, pois amanhã morreremos”.

- É verdade. A fé sem ressurreição é uma impossibilidade. Acaba com todo o cristianismo.

- Então? Como o senhor lida com isso?

(O professor assume um olhar distante e deslumbrado.)


- É verdade que pouquíssimos professores de seminário têm certeza da ressurreição. Mas você não percebe a beleza da coisa? É isso que torna o cristianismo mais desafiador! É isso que caracteriza o salto de fé: crer apesar da razão, apesar do bom-senso, apesar dos fatos, apesar da ciência! Pouco importa se Cristo ressuscitou ou não: mesmo sem ser verdadeira, a idéia da ressurreição é o que faz irromper a fé! É o que faz os homens se inspirarem em Cristo para viverem melhor!


- Mesmo se Cristo tiver mentido sobre ser Filho de Deus e tudo o mais?

- Mesmo se Cristo sequer tiver existido, meu filho!

(Um dos jurados ia pedir permissão para falar sobre o salto de fé como uma categoria existencialista, mas não teve tempo: os estudantes invadiram o palco e ergueram o quinto professor nos braços, triunfalmente, jogando-o para cima: “É o maior! É o maior!” O apresentador não conseguiu restabelecer a ordem. O troféu teve de ser enviado à casa do professor, que ficou uma semana de cama com dores nas costas.)


Fim

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