Coletânea

domingo, junho 05, 2005

 

Bromoprida e subjetivismo

Immanence without transcendence cannot be "lived",
it can only make descriptions and theorise
.
James Houston

Ao escrever sobre Descartes, o professor Olavo de Carvalho procura retraçar o paradoxo de uma teoria do conhecimento que pretende instaurar a dúvida radical como único e seguro ponto de partida. Ao anunciar algo como só sei que nada sei – mais cartesiano que propriamente socrático – , Descartes realiza um verdadeiro malabarismo ao tornar a dúvida em certeza fundadora após um movimento anterior de cisão: o sujeito do conhecimento ergue os pés do mundo conhecido e dele se retira, colocando-o “entre parênteses” e fundando-se em superioridade sobre o objeto que quer conhecer. Assim, a divisão entre sujeito e objeto para o processo de conhecimento é que permitiria ao sujeito afastar-se para duvidar, com base em uma pressuposição: a de uma visibilidade do mundo sem que se esteja implicado nele. No entanto, como pode fazê-lo o homem, se nunca esteve fora do mundo?, indaga-se o professor. E eu completo aqui: como pôde achar que o fazia Descartes? Pois a experiência de estar fora do mundo, realmente fora do mundo, geraria uma angústia intolerável para qualquer um.
Não tiro do nada essa observação. A depressão do astronauta Aldrin quando voltou da lua não se deveu simplesmente, creio eu, a um anticlímax depois de ter realizado um dos maiores feitos de que a humanidade foi capaz. Depois de ter pisado na lua e de ter visto o planeta em que vivemos ao longe, uma imensa bola azul no espaço em vez da tranqüilizadora bola branca, imagino que tenha balbuciado palavras semelhantes às que exclama o solitário personagem de David Bowie, major Tom, quando em órbita em torno da Terra: “Planet Earth is blue and there’s nothing I can do...” Como se preparar o suficiente para tal deslocamento, como evitar sensações de medo e impotência? Mas, claro, expedições de caráter científico não permitiriam o reconhecimento de tais fraquezas. Aldrin o expressou quando voltou, por meio da depressão: após ver-se fora do mundo, precisou de algum tempo para entrar adequadamente nele de novo.
Em um desejo de evadir-se, muita gente já induziu seus próprios estados de “fora do mundo” por meio da ingestão voluntária de substâncias químicas. Mas o que dizer de um deslocamento absolutamente involuntário? Deste, sofri três vezes, e vou relatar essas três experiências aqui.
No entanto, antes de começar, devo dizer que há controvérsias quanto à bromoprida que, não sendo médica nem farmacêutica, não posso elucidar. Em uma modesta pesquisa pessoal, recolhi relatos de pessoas que experimentaram efeitos parecidos com os meus, mas também ouvi profissionais abalizados me dizendo que a bromoprida não costuma causar o que descrevi. Portanto, poderia ser bromoprida, fluoxetina ou qualquer outra substância; o que importa, para mim, é a sensação abismal de estar fora do mundo que me acometeu nas três ocasiões em que a tomei.
Na primeira, houve uma depressão indizível; já era de noite. Lembro que me enrolei na cama e me forcei a dormir, esperando que o dia trouxesse o bem-estar de volta. Nunca havia experimentado nada parecido, porque não me recordo, antes disso, de ter tido o seguinte pensamento que me ocorreu naquela noite: como, em algum dia da minha vida, eu pude me sentir bem? Como pude viver meu dia-a-dia, levantar, comer, sair para trabalhar?
A partir de então, eu nunca mais poderia deixar de refletir nesse estado de alma, que havia conseguido até mesmo apagar, ainda que por algumas horas, toda memória emocional de normalidade.
A segunda vez foi a pior. Administraram-me bromoprida por meio de intravenosa, no soro, depois de uma intoxicação alimentar. Alguém viria me buscar dentro em pouco. Findo o soro, eu saí da maca e tentei me sentar no banco de espera, mas qualquer posição ali me era insuportável. Era como se houvesse uma inadequação entre mim e meu corpo, entre mim e qualquer objeto que eu tentasse reconhecer e tocar. Era como se tudo à minha volta gritasse silenciosamente que eu não estava ali. Fui então tomada de um pânico quieto. Imaginei que minha saúde não andava boa, imaginei o que aconteceria se me acometesse algo mais sério e eu tivesse que depender de hospitais, de visitas. No auge do desespero, perguntei-me quem poderia me valer. Não havia Deus: naquele momento eu era um vazio flutuando em algum vazio maior. O antimundo à minha volta gritava a inexistência de Deus em uma espécie de ateísmo radical e involuntário que havia me possuído. Sem Deus, alternativamente comecei a repassar na lembrança todas as pessoas que eu conhecia e que sabia gostarem de mim, meus pais, meus amigos, para assegurar-me de que elas me valeriam, elas não deixariam que eu perecesse em meio a doença e solidão. Mas a evocação de cada uma delas de nada me confortou. A cada rosto familiar, eu era ferida pela irreparável impossibilidade de que pudessem fazer algo por mim.
Quando minha amiga chegou, eu já estava morta. Subjetivamente, não havia sobrado muito no processo. Caminhei com ela até a casa sem articular palavra. Entrei, e ela me perguntou se eu queria que ela ficasse ali, dormisse ali comigo. Eu respondi que tanto fazia. Não podia responder outra coisa. Depois de ter experimentado solidão tão absoluta, não havia sentido em desejar ou não sua presença. Ela se foi bastante chateada, mas creio que eu não poderia, daquele jeito, ter-lhe explicado o que se passava comigo.
Na terceira, bem, a terceira foi mais suave, muito mais suave. Pode-se dizer que, em comparação com a segunda, eu tirei de letra. Mas houve um problema com que eu não contava: durou mais. Novamente no hospital, administraram-me a bromoprida e poucos minutos depois eu já me sentia invadida de uma agitação intolerável. Implorei para o médico me deixar sair (ele riu!), menti que não estava mais tonta, ele me deu o atestado, voei pela porta e peguei um táxi.
No carro, achei que o dia lindíssimo me consolaria, mas não me consolou. Percebi que me sentia miserável, um pobre-diabo, separada para sempre do mundo dos mortais. Os objetos que eu tocava e via – a maçaneta da porta, os prédios, a praia, as montanhas – perdiam a densidade e o valor que o cotidiano lhes atribuía, transformando-se em um opaco cenário de pesadelo. Indaguei como tudo ao meu redor parecia vivo, mas eu não conseguia participar dessa vida. A vida, como vêem, passou a ser “essa vida”, um dêitico indicando que, ao apontar para ela, identifico-a como algo fora de mim.
De resto, cheguei em casa e me forcei a dormir durante toda a tarde, e depois a noite inteira. Só me libertei de verdade da sensação macabra dois dias depois, com meus alunos, ao perceber que havia conseguido entrar na vida por completo. Antes disso, o sabor de estar “um pouco” fora me consumia, mas dessa vez eu soube ser paciente – e sabia que Deus estava comigo.
De onde tiro a conclusão: o mero sentir-se fora do mundo é insustentável. Realmente fora do mundo, quero dizer. Sem a sensação de euforia que deve acompanhar alguns estados induzidos por alucinógenos, sem a grogueira de uma bebida, de uma anestesia forte. Estar separado da vida e continuar lúcido equivale, acredito, a morrer e continuar vivo. Podemos nos perguntar por que ainda estamos ali, já que tudo parece ter perdido a capacidade de mostrar-se coerente. Perdemos Deus, pessoas, coisas. Como se rompido para sempre o laço que nos amarra ao mundo e nos proporciona sentido e pertencimento.
Não foi o que aconteceu com Descartes – não que soubéssemos. Ao que me consta, prosseguiu tranqüilamente com sua filosofia, com os cuidados de praxe que a instituição religiosa da época inspirava. Sem implicar-se por inteiro no sistema que criou – como viver permanentemente na dúvida radical? – , teria elaborado para si nada mais que a ficção de se colocar fora do mundo. Tirou daí, acredito, todo um modo de racionalizar a vida que já não corresponde mais à vida, mas é unicamente mental. Ele não sofreu por estar fora da vida, porque realmente não estava. Mas toda a sua construção filosófica se baseia nessa ruptura de estados mentais e emocionais, de lógica e experiência – ruptura que não por acaso caracteriza o subjetivismo reinante nos estudos universitários, hoje, com mais força que nunca.
Toda a filosofia moderna, por assim dizer, é cartesiana, ao desejar um esquema abstrato que proporcione a vertigem de uma gnoseologia total em vez de uma tentativa de conhecimento parcial do mundo e no mundo. Ao comprar a idéia de Descartes, o pensamento moderno quer inaugurar a última e definitiva forma de filosofar, para isso pretendendo-se o filósofo um puro “olho”, independente e isento. Porém, em tudo isso há como que uma brincadeira, uma proposta que poderia talvez ser formulada assim: vamos brincar de nos colocar fora da realidade e imaginar tudo de novo? Vamos dizer que só existe o que a gente pensa que existe? Como brincadeira, isto pode ser feito sem maiores conseqüências, pois continua-se no controle do processo – o real está ali fora, pacientemente à espera. A ficção ganha contornos perigosos quanto mais crê nela o pensador; mas, ainda assim, não há sofrimento em uma ruptura apenas mental com o mundo.
Eu pergunto então: se Descartes tivesse experimentado os efeitos da bromoprida, será que basearia nessa divisão sua filosofia? Se, em um só dia de suas alegres vidas, professores e estudantes universitários que se entusiasmam com a proposta subjetivista tivessem sido jogados por inteiro – não só mentalmente – no abismo de uma separação entre consciência e realidade, será que não correriam de volta assim que possível? Se soubessem o que é estar fora do mundo sem o terem desejado, filósofos e aspirantes a filósofos retornariam com urgência do projeto subjetivista, rogando com humildade a quem detém a chave de todo sentido uma nova chance de um processo de conhecimento do mundo em que não se alienassem de si mesmos.

 

A estudante de psicologia

Recentemente, conversei com uma estudante de psicologia no último ano de faculdade. Tinha acabado de escrever minha crônica Sabedoria Popular e Politicamente Correto, em que falo da anti-religiosidade como um dos atuais traços de uma predominância raivosa da vontade de correção política. Em poucas palavras ela confirmou o que eu dissera, ou melhor, serviu de amostra viva ao que eu dissera.

O papo foi informal e amigável, mas deveria ser curto, já que eu e minha amiga teríamos que estar na igreja às sete horas naquele domingo e já eram quinze para as sete. Para uma visita rápida, acompanhei-a à casa da futura psicóloga, que me foi apresentada. Minha amiga contou que andara fazendo análise com uma moça que recebia seus pacientes na igreja, e que não havia gostado do modo com que ela conduziu o processo (não contou por quê). A estudante de psicologia deu o seu aval: não se deve misturar psicologia com religião, pois é mistura que sempre dá errado. E contou por sua vez que havia em sua faculdade algumas colegas que eram... freiras! (Ela mesma pareceu impressionada com o fato de freiras desejarem cursar psicologia.) Não escondeu o riso ao revelar que elas se sentiam especialmente pouco à vontade nas aulas de Sexologia e que, por fim, acabavam abandonando o curso. Percebi que o tom não era despropositado, mas parte do argumento da tese enunciada no princípio: “Não se deve misturar psicologia com religião.” Percebi, sobretudo, que o desfecho, que se estendeu à totalidade das freiras – “acabavam abandonando o curso” – apontava para o fato de uma irremediável inadequação, como se não pertencessem àquele lugar, ou não devessem nunca ter estado ali.

Na verdade, ouvi além disso. Ouvi, nas dobras do relato da estudante de psicologia, uma velada indignação ante a presença das freiras em sala de aula – indignação que não vinha dela, em particular, mas de pelo menos dois séculos de implantação de um pensamento anti-religioso na academia. Desde a Revolução Francesa, o materialismo e o humanismo são in, a religião é out. Com Freud, então, quaisquer tentativas de reconciliação entre ciência (como ele queria a psicanálise) e fé constituem macabra heresia. Como então ousavam as freiras estar ali? Será que elas não entendiam que a religião deveria curvar-se diante do fundo materialista em que se baseia toda a ciência desde Descartes? Pretendiam elas obscurecer a ciência com toda uma mística cristã indesejada? Ora, que deixassem os trajes negros lá fora! Que resolvessem antes de que lado estão!
Copiosos anos de uma anti-religiosidade militante no meio universitário engendraram o seguinte preconceito: ninguém seriamente engajado em uma religião pode exercer com a isenção necessária o ofício da psicologia. Que às avessas poderia ser enunciado assim: todo psicólogo ou psicanalista precisa ser ateu ou agnóstico conceitual. Conclusão de um processo histórico que se revela enfim puramente arbitrário, este imperativo pode ser estendido a quase qualquer área: um pensador sério não pode ter religião – se tiver, afinal ninguém é perfeito, precisa deixar suas convicções fora de suas pretensões teóricas, sob o risco de ser ignorado ou rechaçado. Se isto não é preconceito, não sei o que poderia ser.

De minha parte, acho no mínimo triste que, no intuito de refrescar seus modos de compreensão humana e aceder a um saber democraticamente disponível, ainda que muitas vezes em oposição frontal ao que crêem, as freiras tenham trombado com tamanha indelicadeza por parte de pelo menos uma de suas colegas. Já bastante separadas do mundo secular devido à natureza de seu compromisso com Deus, as freiras foram condenadas virtualmente a uma esquizofrenia mental: a profissão não se exerce onde há fé. Parece que, nesses tempos de rasgada tolerância para com opções de toda sorte, a opção religiosa é a única que não conta. Hoje, a humildade da religião, e este episódio é um grande exemplo disso, não raro é recompensada pelo sarcasmo da ciência.

 

Politicamente Correto e Sabedoria Popular

Quando eu era mais nova, ainda nos tempos da graduação, criei o protótipo de dois personagens de uma série de crônicas que, infelizmente, não passou da primeira (que você pode ler aqui). Expressões personificadas de formas de pensamento e visões de mundo quase totalmente opostas, Sabedoria Popular e Politicamente Correto se encontrariam a cada crônica para um saudável embate de idéias, em que um e outro trocariam suas opiniões de forma contrária e às vezes, mas raramente, chegariam a uma conclusão em comum.

Sabedoria Popular seria um personagem caloroso e sentimental, prático e pé-no-chão, com um gosto pela simplicidade e por uma transparência quase ingênua; seria acima de tudo a guardiã da tradição, das raízes familiares, do sentimento religioso, muitas vezes transbordando de crendices, preconceitos e ditados fiéis ao senso-comum. Contrabalançando-a, Politicamente Correto, fazendo uso de uma lógica mais complexa e menos convencional, representaria a vanguarda, o relativismo, o idealismo, além de tender para um acentuado comportamento diplomático, desejoso de agradar a gregos e troianos; porém, ostentaria o típico orgulho intelectual das academias e com freqüência sacrificaria a sinceridade e a criatividade pessoal ao pensamento coletivo, visando a um certo status quo.
Meu desejo com essa série de crônicas era demonstrar que, dependendo do tema proposto e da razoabilidade dos argumentos que cada um dos personagens apresentasse, um ou outro sairiam vitoriosos do debate. Eu tentaria não privilegiar nenhum dos dois, mas procuraria dar a entender que diferentes assuntos pedem diferentes abordagens, e que o excesso de tradicionalismo e senso-comum pode ser tão prejudicial quanto o excesso de relativismo e espírito de grupo, dependendo da questão a ser discutida. Mostraria, sobretudo, o quanto é possível uma síntese equilibrada entre as duas formas.
Hoje, porém, deparo-me com esta conclusão: o frescor da idéia não mais residiria na polaridade entre os dois personagens, que parece caminhar para o desaparecimento. Hoje, torna-se evidente para mim que, nos debates em cena, tudo quanto se relaciona com Sabedoria Popular está sendo posto de lado por um pensamento Politicamente Correto cada vez mais dominante. Isto, não por sua (pretensa) superioridade intelectual; mas no tapa.
Sim. Hoje percebo que, devido a esse desequilíbrio, a série de crônicas também dificilmente passaria da primeira. Se fosse ressuscitado, Politicamente Correto seria um personagem que não quer mais conversar. Diplomático com todos menos com quem lhe apresenta objeções sérias a seu discurso, ele perderia rapidamente a paciência durante os diálogos, planejaria de imediato tomar a frente em atitudes de foro público e enfiaria goela abaixo de Sabedoria Popular toda sorte de mandamentos de correção política.
Assim, para sobreviver além da primeira crônica, a série não trataria mais da disputa civilizada entre os dois personagens, mas da história da progressiva loucura de Politicamente Correto! Cuspindo com desprezo as épocas antigas, bêbado de um relativismo sem limites, ele passaria a defender tudo quanto é atentado a saberes tradicionais, declarando que o absoluto é o contingente, o agora. À voz de Sabedoria Popular, tamparia os ouvidos e gritaria de horror em vez de argumentar com tranqüilidade, até que, no ápice do processo, para eliminar toda oposição a suas propostas de transformar o mundo, ele terminaria por assassinar a outra personagem, em um espasmo final de ódio. O velho conflito estaria resolvido da forma mais violenta e totalitária possível: calam-se as vozes discordantes e, à força, resolve-se o problema da união mundial e da paz entre os povos.
Mas com certeza não precisarei escrever essa primeira (e talvez última) crônica. Quem tiver curiosidade de saber o que terá acontecido com Sabedoria Popular pode empreender sua própria investigação pessoal. Com um tímido olhar ao redor, já podem ser detectados, mesmo aqui no Brasil, tão “sabedoria popular” em tantos aspectos: uma visão excessivamente politizada das relações humanas, de modo a que tudo se resuma a lutas de poder; o ceticismo e a desconfiança como expressões máximas de intelectualidade e savoir vivre; uma anti-religiosidade militante; a proibição velada ao questionamento de determinadas idéias consideradas “politicamente corretas”; uma sede de igualdade tão disparatada que, ao querer diluir a todo custo as mínimas diferenças individuais, acaba solapando a liberdade pessoal ao punir quem ouse se manifestar de outro modo... Do meio universitário aos nichos urbanos mais periféricos, a tônica é esta, com pequenas variações. A saudável dissonância cede progressivamente a um totalitarismo que quer se chamar libertário. Como se vê, não preciso mais ressuscitar minha série de crônicas: a história está aí, ainda sem final definido, para quem quiser (e puder) ler.

 

Uma imagem da modernidade

Inspirado em Proust, Em busca do tempo perdido,
quando o narrador se extasia diante
do famoso chafariz de Hubert Robert.


Um homem vê ao longe um objeto, e o chama quase que imediatamente pelo nome, pois distingue com facilidade sua forma, seus contornos, sua beleza estática. No entanto, ao chegar mais perto, diante da miríade de detalhes que lhe haviam escapado, o que antes se oferecia aos olhos como uma presença coesa se lhe afigura subitamente como um aglomerado de informações difusas. O homem se detém por infinitos momentos em meio ao que agora lhe parece o objeto real, mais próximo ao toque, embora sem forma definida.

As arestas vislumbradas de bem perto não mais se integram à nítida imagem anterior. De posse das novas percepções sobre o objeto, o homem não se afasta novamente para as sobrepor ao que via. Atarantado – e mesmo deslumbrado –, ele se perde no desvanecimento das formas, nas sensações provocadas por esse desvanecimento, e se esquece do que o nomeava. A lembrança do objeto, ou do que o tornava objeto, é perdida. Em meio ao turbilhão que lhe excita os sentidos, o homem se fixa somente na transformação do objeto em coisa nenhuma, prometendo a si mesmo que não mais se deixará enganar por formas percebidas ao longe – e a tudo pulveriza com seus olhos de lupa. O mundo lhe parece então todo feito de caóticas partículas que a nada ordenam, obedecendo apenas a uma lei constante: a mobilidade.

E, apaziguado por essa única lei, o homem se recolhe no sono satisfeito das abstrações para sempre adiadas.

 

Hoje eu não vou pra escola

Conto infantil
Não vou, já decidi que não vou. Prefiro ficar aqui na cama, pensando milhões de coisas, no meu instituto de morcegos e no sonho que eu tive. Adoro ficar lembrando dos sonhos. Além do mais, detesto esse tempo fechado chuvoso, parece que o dia inteiro é à tarde, que são eternamente cinco horas (quer dizer, dezessete) até anoitecer. Então, eu fico pensando: “Não tem manhã hoje”, e me dá vontade de ficar aqui na cama o dia todo, até amanhecer de verdade. O que só vai acontecer no outro dia. Aí eu penso: “Então eu não vou pra escola”, e fico na cama até me dar fome ou coceira de levantar, o que vier primeiro.
Mas hoje eu não vou, já decidi; ainda mais hoje, que tive um sonho ótimo: a minha mãe tinha me levado para uma casa linda, com planta, árvores, natureza à beça, e tinha um balanço na árvore maior de todas. Aí eu fiquei me balançando o tempo todo, pra lá, pra cá, a maior alegria! Não me preocupava com nada. Minha mãe nem falava em escola, nem tinha! E eu só ficava pensando que queria ficar lá pra sempre.
E agora me lembrei do meu instituto de morcegos; é porque quero desenvolver essa idéia, e não me lembro de como o sonho acabou. Acho que foi assim mesmo: fiquei lá pra sempre. Aí eu fico imaginando o resto: será que eu fiquei feliz (como nas histórias) ou eu comecei a ter saudade dos meus amigos, da professora, do meu cachorro? Provavelmente eu ia ter saudade. Então eu fico pensando: não ia adiantar nada ficar lá pra sempre, ia acabar enjoando. Que droga!

Mas aí eu enjôo mesmo é de ficar pensando no sonho, e começo a mudar de pensamento: meu instituto de morcegos. Aí eu fico todo emplogado, começo a me mexer na cama: meu instituto de morcegos! Igual ao Butantã, só que esse é de cobras; foi lá que eu tive a idéia. Eu ia trabalhar o dia todo lá, além de ser o dono, é claro. Ia ficar pesquisando tudo sobre os morcegos, a vida deles, o que comem, como se reproduzem, todas aquelas coisas legais que a gente aprende na escola e que às vezes é meio chato, eu ia descobrir sozinho. E depois... depois, aí sim, a grande idéia: eu ia descobrir TUDO sobre aquela história dos vampiros. É claro, eu teria que ter um morcego daqueles que viram vampiros, e como eles são raros o meu instituto teria que ser bem grande. Então eu teria uns mil morcegos, e pelo menos um deles seria o vampiro. Mas eu levaria anos para descobrir qual é, então eu precisaria ser um ótimo, excelente (o melhor de todos!) pesquisador de morcegos. E aí, tchan tchan tchan tchan, eu descobriria o segredo dos vampiros! Seria igual ao Butantã, o meu instituto: fabricaria antídotos contra o veneno dos vampiros, e aí ninguém mais viraria vampiro. Porque quando uma pessoa é mordida, nada mais resta a fazer: tem que matar a pessoa, é horrível. O meu instituto, então, ia salvar um monte de gente! Eu ia ficar famoso, rico, aparecer na televisão e tudo. Minha mãe ia ficar toda feliz!

Ou então (já pensou?) ela não ia gostar nem um pouco: Que história é essa de morcegos, Marquinhos? Você não disse que ia ser bombeiro? Eu ia falar: Eu sei, mãe, mas agora eu já desisti, vou salvar as pessoas mas de outro jeito. Ela ia falar: É, mas e se os vampiros não existem? Se é tudo mentira dos filmes, dos livros? Você vai passar a vida toda pesquisando à toa. Eu ia dizer: Mas EU SEI que eles existem, mãe! E ela ia acabar aceitando.

Por falar na minha mãe, aí vem ela: já tô escutando os passos do chinelo. Vai abrir a porta, espantada porque ainda não acordei, vai me chamar pra tomar café. E eu vou ter que ir! Ah não, tava tão bom aqui! Vou cobrir a cabeça com o lençol.

– Marquinhos! Ainda não levantou? Anda logo, senão vai perder a hora!

E se eu finjo que estou dormindo, ela vem devagarinho e me cutuca:

– Filhinho, acorda, já tá na hora de ir pra escola.

Ah, droga, não vai ter jeito: vou ter que ir. Descubro a cabeça e olho pra minha mãe: tá com a cara tão engraçada, de sono, e com um sorriso tão bonito que eu abraço ela: mãaae! E pensando bem, acabei de me lembrar: hoje vai ter aula de laboratório! E o Carlinhos vai levar as revistinhas, pra me emprestar. Levanto, todo feliz, oba! Já tô indo, mãe, já tô indo.

 

O desfile dos homens nus

Comece o desfile dos homens nus! Deixem-nos desfilarem na ordem que desejarem, que puderem desejar. Vejam-nos magros, famintos, atravessarem o desfiladeiro da miséria humana com seus pobres órgãos pendentes, seus pobres rostos decaídos. Vejam-nos murcharem à medida que caminham, sem que despertem a compaixão de outrem.

Vejam como são pobres, cegos e nus.

São os homens de quem eu falava, os pobres homens, que passeiam por esta vida sem perguntar-se por que vieram. Andam sem objetivo, à medida que seus corpos se inclinam para um lado ou para outro. Um cansado desequilíbrio determina seus caminhos.

Estão nus, porque não podem mais estar de outro jeito. Acabou toda fantasia, vestes de ouro e prata se perderam pelo caminho. Acabou-se o pudor de ensaiar a cobertura das mãos, o encolher de ombros envergonhados. Desfilam nus, nus estão sem que possam evitá-lo, e já não querem. Percebem, de uma forma ou de outra, que nada pode esconder deles ou de quem quer que seja a verdade de seus corpos castigados.

* * *

Houve uma época em que eu sentia um verdadeiro prazer em estar com as pessoas. Conhecer alguém era sempre uma grande alegria. Eram raras as antipatias instantâneas, e sons de vozes aleatórias, alternando-se em musicalidade dissonante, deixavam-me alegre, ainda que mal prestasse atenção no conteúdo das conversas ou pouco esboçasse esforço para compreendê-las.
Hoje, não sei se posso dizer que ocorre o contrário. Há apenas uma ausência. Estou com as pessoas, mas as acho velhas. Por vezes percebo um impulso do antigo interesse, e as encaro, segundos após vê-las pela primeira vez, como imagens holográficas superpostas, prontas a oferecer beleza a partir de um exame detalhado. No entanto, logo esta primeira expectativa se desvanece, e estou diante de um déjà-vu.

Cada pessoa que conheço é a mesma, cada palavra que me lançam já é palavra dita longo tempo atrás.

Por vezes indago se não seria sempre algo entre meus olhos e o que se apresenta a mim. Uma parede, um desvio da vista, impediriam que eu percebesse o novo. Como se eu tentasse copiar um cd em uma fita cassete antiga e já bem usada: ao tentar ouvir o que penso ter gravado, deparo-me com os sons arrastados e horripilantes de músicas que não gostaria de repetir.

Mas talvez este pensamento seja por demais silogista. Talvez esteja de fato testemunhando, mais com reações emocionais que com teorias científicas (a dor que advém do impacto!), os sinais e as conseqüências da imitação de comportamentos aprendidos, apaziguadora e não fruto de amor: o aglomeramento no lugar do encontro. Estaria assistindo, então, à crescente vitória do impulso homogeneizador da coletividade, sem nada poder fazer, com certa culpa (são pessoas e gostam de mim) e horror (onde estão, de fato, as pessoas por trás da potência homogeneizante)?

* * *

Desfilam os homens nus. Gozam da companhia um do outro? Afinal, estão juntos e caminham na mesma direção. Não deveriam falar-se? Não poderiam trocar impressões e comentários sobre a precariedade de sua situação? Não deveriam desfazer a fila e caminhar lado a lado em duplas ou grupos de três, quatro?Não: em silêncio caminham, e já não sabem por que ou para que estão unidos.

 

Hoje comecei a riscar todos os dias

Composto antes de minha conversão,


inspirado no livro de Jó e em um poema de Camões,

Hoje comecei a riscar todos os dias,
o mesmo dia, o mesmo dia
como que para provar minha inocência
e de todos aqueles que, mal nascidos ou nem isso,
temem a morte e a vida em morte
mas não temem a morte em vida
nem a vida, ela mesma,
como a sucessão de dias
como este, em que eu, inocentemente,
risquei os dias iguais, o mesmo número,
o mesmo mês, ano e dia
de minha vida, de toda a vida
que vi vivida na tela de meus anos
passados, e o futuro, este ser ininteligível,
que se descarte, que se afaste de minha vida.

 

O menino vem descendo a montanha

O menino vem descendo a montanha sozinho. Ele traz uma vara comprida na mão, e nem se pergunta por quê. Ele está sozinho. De vez em quando contempla a própria sombra, talvez para passar o tempo, enquanto caminha às vezes tropeçando, às vezes descendo suavemente olhando para baixo. Cuidado com as pedras. Ele sabe.

O menino é louro, cabelo fininho. Ele brilha quando bate o sol, e o rosto está vermelho de tanto sol e tanto andar. Ele já está andando há um bocado de tempo, e aparecem as primeiras graminhas no chão. Bom, pois contornar as pedras era tarefa difícil, de tantas que havia pelo caminho. Ele estava descalço, se machucava com elas. Mas grama é macio, e dava uma tranqüilidade imensa pisar no macio. Os pés ardiam um pouco também, às vezes escorregava na terra batida do morro, e aí era horrível por não ter onde se segurar. Dava uma sensação de desamparo que parecia uma pré-morte, mas ao silenciar o resvalo do corpo na montanha o coração se calava aos poucos, e a força parecia redobrar à medida que ele se reafirmava vivo.
O sol brilhava cada vez mais denso, o menino sentia o ardor sem se queixar, enxugando em vão o suor dos cabelos com a mão que sobrava. A outra, a da vara, permanecia fechada e inerte, quase esquecida, a vara imóvel que só tremia quando o caminho ficava pior. Mas agora não, as graminhas eram cada vez mais freqüentes, e o menino olhou o sol num relance, feliz. Parecia que ganhava a luz do sol, andando em direção a ela tão confortável com a macieza do chão, recompensa depois de tanta pedra difícil. O impulso foi grande, pulou e sacudiu a vara sem querer, riu alto, quase tropeçou e saiu de velocidade redobrada, rindo com o coração aos pulos do susto do tropeço. Não só do susto, o coração pulava como carneiro livre, e o grande choque de felicidade aconteceu com o telhadinho vermelho: o telhadinho apareceu finalmente, rápido como visão de sonho, e o menino gritou sacudindo os braços – eeeei! eeeei! Gritava para si, para o mundo, correndo livremente já sem medo de tropeçar, a vida, o mundo era ele e todo ele, o chão, o sol, o ar e o telhadinho vermelho, tudo era vida e energia e luz irradiando e emanando do menino.

Um cachorro. A mãe, depois o pai e o irmãozinho pequeno, todos apareceram aos gritos do menino.

Depois foi só alívio, abraço, e perguntas. O menino comia ávido, as mãos nem limpas segurando com força e cuidado o pedaço grande de bolo. A mãe alisa o cabelo com cuidado também, olha comovida, pensa. O resto são perguntas, apenas ela permanece calada. O filho está ali, é tudo que importa. Sobram palavras, cochichos e surpresas, pessoas novas à casa entram, mas o instante único está ali: a mãe contempla o seu filho. Nada mais importa. Ele come e está bem.

Com paciência esperam, ele logo começa a responder as perguntas, mas está cansado, quer dormir e as palavras vêm moles, o olho preguiçoso, a mão suja esfregando o rosto. Bem que a mãe olhou, pegou o menino pelo braço, vem se lavar, menino. E todo mundo tem que ir embora para que o menino possa dormir.

“Esse menino...”, todo mundo pensa.

E a mãe, só ela, fica ao lado do menino vendo ele dormir.

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