Quando eu era mais nova, ainda nos tempos da graduação, criei o protótipo de dois personagens de uma série de crônicas que, infelizmente, não passou da primeira (que você pode ler aqui). Expressões personificadas de formas de pensamento e visões de mundo quase totalmente opostas, Sabedoria Popular e Politicamente Correto se encontrariam a cada crônica para um saudável embate de idéias, em que um e outro trocariam suas opiniões de forma contrária e às vezes, mas raramente, chegariam a uma conclusão em comum.
Sabedoria Popular seria um personagem caloroso e sentimental, prático e pé-no-chão, com um gosto pela simplicidade e por uma transparência quase ingênua; seria acima de tudo a guardiã da tradição, das raízes familiares, do sentimento religioso, muitas vezes transbordando de crendices, preconceitos e ditados fiéis ao senso-comum. Contrabalançando-a, Politicamente Correto, fazendo uso de uma lógica mais complexa e menos convencional, representaria a vanguarda, o relativismo, o idealismo, além de tender para um acentuado comportamento diplomático, desejoso de agradar a gregos e troianos; porém, ostentaria o típico orgulho intelectual das academias e com freqüência sacrificaria a sinceridade e a criatividade pessoal ao pensamento coletivo, visando a um certo
status quo.
Meu desejo com essa série de crônicas era demonstrar que, dependendo do tema proposto e da razoabilidade dos argumentos que cada um dos personagens apresentasse, um ou outro sairiam vitoriosos do debate. Eu tentaria não privilegiar nenhum dos dois, mas procuraria dar a entender que diferentes assuntos pedem diferentes abordagens, e que o excesso de tradicionalismo e senso-comum pode ser tão prejudicial quanto o excesso de relativismo e espírito de grupo, dependendo da questão a ser discutida. Mostraria, sobretudo, o quanto é possível uma síntese equilibrada entre as duas formas.
Hoje, porém, deparo-me com esta conclusão: o frescor da idéia não mais residiria na polaridade entre os dois personagens, que parece caminhar para o desaparecimento. Hoje, torna-se evidente para mim que, nos debates em cena, tudo quanto se relaciona com Sabedoria Popular está sendo posto de lado por um pensamento Politicamente Correto cada vez mais dominante. Isto, não por sua (pretensa) superioridade intelectual; mas no tapa.
Sim. Hoje percebo que, devido a esse desequilíbrio, a série de crônicas também dificilmente passaria da primeira. Se fosse ressuscitado, Politicamente Correto seria um personagem que não quer mais conversar. Diplomático com todos menos com quem lhe apresenta objeções sérias a seu discurso, ele perderia rapidamente a paciência durante os diálogos, planejaria de imediato tomar a frente em atitudes de foro público e enfiaria goela abaixo de Sabedoria Popular toda sorte de mandamentos de correção política.
Assim, para sobreviver além da primeira crônica, a série não trataria mais da disputa civilizada entre os dois personagens, mas da história da progressiva loucura de Politicamente Correto! Cuspindo com desprezo as épocas antigas, bêbado de um relativismo sem limites, ele passaria a defender tudo quanto é atentado a saberes tradicionais, declarando que o absoluto é o contingente, o agora. À voz de Sabedoria Popular, tamparia os ouvidos e gritaria de horror em vez de argumentar com tranqüilidade, até que, no ápice do processo, para eliminar toda oposição a suas propostas de transformar o mundo, ele terminaria por assassinar a outra personagem, em um espasmo final de ódio. O velho conflito estaria resolvido da forma mais violenta e totalitária possível: calam-se as vozes discordantes e, à força, resolve-se o problema da união mundial e da paz entre os povos.
Mas com certeza não precisarei escrever essa primeira (e talvez última) crônica. Quem tiver curiosidade de saber o que terá acontecido com Sabedoria Popular pode empreender sua própria investigação pessoal. Com um tímido olhar ao redor, já podem ser detectados, mesmo aqui no Brasil, tão “sabedoria popular” em tantos aspectos: uma visão excessivamente politizada das relações humanas, de modo a que tudo se resuma a lutas de poder; o ceticismo e a desconfiança como expressões máximas de intelectualidade e
savoir vivre; uma anti-religiosidade militante; a proibição velada ao questionamento de determinadas idéias consideradas “politicamente corretas”; uma sede de igualdade tão disparatada que, ao querer diluir a todo custo as mínimas diferenças individuais, acaba solapando a liberdade pessoal ao punir quem ouse se manifestar de outro modo... Do meio universitário aos nichos urbanos mais periféricos, a tônica é esta, com pequenas variações. A saudável dissonância cede progressivamente a um totalitarismo que quer se chamar libertário. Como se vê, não preciso mais ressuscitar minha série de crônicas: a história está aí, ainda sem final definido, para quem quiser (e puder) ler.