Immanence without transcendence cannot be "lived",
it can only make descriptions and theorise.
James Houston
Ao escrever sobre Descartes, o professor
Olavo de Carvalho procura retraçar o paradoxo de uma teoria do conhecimento que pretende instaurar a dúvida radical como único e seguro ponto de partida. Ao anunciar algo como só sei que nada sei – mais cartesiano que propriamente socrático – , Descartes realiza um verdadeiro malabarismo ao tornar a dúvida em certeza fundadora após um movimento anterior de cisão: o sujeito do conhecimento ergue os pés do mundo conhecido e dele se retira, colocando-o “entre parênteses” e fundando-se em superioridade sobre o objeto que quer conhecer. Assim, a divisão entre sujeito e objeto para o processo de conhecimento é que permitiria ao sujeito afastar-se para duvidar, com base em uma pressuposição: a de uma visibilidade do mundo sem que se esteja implicado nele. No entanto, como pode fazê-lo o homem, se nunca esteve fora do mundo?, indaga-se o professor. E eu completo aqui: como pôde achar que o fazia Descartes? Pois a experiência de estar fora do mundo, realmente fora do mundo, geraria uma angústia intolerável para qualquer um.
Não tiro do nada essa observação. A depressão do astronauta Aldrin quando voltou da lua não se deveu simplesmente, creio eu, a um anticlímax depois de ter realizado um dos maiores feitos de que a humanidade foi capaz. Depois de ter pisado na lua e de ter visto o planeta em que vivemos ao longe, uma imensa bola azul no espaço em vez da tranqüilizadora bola branca, imagino que tenha balbuciado palavras semelhantes às que exclama o solitário personagem de David Bowie, major Tom, quando em órbita em torno da Terra: “Planet Earth is blue and there’s nothing I can do...” Como se preparar o suficiente para tal deslocamento, como evitar sensações de medo e impotência? Mas, claro, expedições de caráter científico não permitiriam o reconhecimento de tais fraquezas. Aldrin o expressou quando voltou, por meio da depressão: após ver-se fora do mundo, precisou de algum tempo para entrar adequadamente nele de novo.
Em um desejo de evadir-se, muita gente já induziu seus próprios estados de “fora do mundo” por meio da ingestão voluntária de substâncias químicas. Mas o que dizer de um deslocamento absolutamente involuntário? Deste, sofri três vezes, e vou relatar essas três experiências aqui.
No entanto, antes de começar, devo dizer que há controvérsias quanto à bromoprida que, não sendo médica nem farmacêutica, não posso elucidar. Em uma modesta pesquisa pessoal, recolhi relatos de pessoas que experimentaram efeitos parecidos com os meus, mas também ouvi profissionais abalizados me dizendo que a bromoprida não costuma causar o que descrevi. Portanto, poderia ser bromoprida, fluoxetina ou qualquer outra substância; o que importa, para mim, é a sensação abismal de estar fora do mundo que me acometeu nas três ocasiões em que a tomei.
Na primeira, houve uma depressão indizível; já era de noite. Lembro que me enrolei na cama e me forcei a dormir, esperando que o dia trouxesse o bem-estar de volta. Nunca havia experimentado nada parecido, porque não me recordo, antes disso, de ter tido o seguinte pensamento que me ocorreu naquela noite: como, em algum dia da minha vida, eu pude me sentir bem? Como pude viver meu dia-a-dia, levantar, comer, sair para trabalhar?
A partir de então, eu nunca mais poderia deixar de refletir nesse estado de alma, que havia conseguido até mesmo apagar, ainda que por algumas horas, toda memória emocional de normalidade.
A segunda vez foi a pior. Administraram-me bromoprida por meio de intravenosa, no soro, depois de uma intoxicação alimentar. Alguém viria me buscar dentro em pouco. Findo o soro, eu saí da maca e tentei me sentar no banco de espera, mas qualquer posição ali me era insuportável. Era como se houvesse uma inadequação entre mim e meu corpo, entre mim e qualquer objeto que eu tentasse reconhecer e tocar. Era como se tudo à minha volta gritasse silenciosamente que eu não estava ali. Fui então tomada de um pânico quieto. Imaginei que minha saúde não andava boa, imaginei o que aconteceria se me acometesse algo mais sério e eu tivesse que depender de hospitais, de visitas. No auge do desespero, perguntei-me quem poderia me valer. Não havia Deus: naquele momento eu era um vazio flutuando em algum vazio maior. O antimundo à minha volta gritava a inexistência de Deus em uma espécie de ateísmo radical e involuntário que havia me possuído. Sem Deus, alternativamente comecei a repassar na lembrança todas as pessoas que eu conhecia e que sabia gostarem de mim, meus pais, meus amigos, para assegurar-me de que elas me valeriam, elas não deixariam que eu perecesse em meio a doença e solidão. Mas a evocação de cada uma delas de nada me confortou. A cada rosto familiar, eu era ferida pela irreparável impossibilidade de que pudessem fazer algo por mim.
Quando minha amiga chegou, eu já estava morta. Subjetivamente, não havia sobrado muito no processo. Caminhei com ela até a casa sem articular palavra. Entrei, e ela me perguntou se eu queria que ela ficasse ali, dormisse ali comigo. Eu respondi que tanto fazia. Não podia responder outra coisa. Depois de ter experimentado solidão tão absoluta, não havia sentido em desejar ou não sua presença. Ela se foi bastante chateada, mas creio que eu não poderia, daquele jeito, ter-lhe explicado o que se passava comigo.
Na terceira, bem, a terceira foi mais suave, muito mais suave. Pode-se dizer que, em comparação com a segunda, eu tirei de letra. Mas houve um problema com que eu não contava: durou mais. Novamente no hospital, administraram-me a bromoprida e poucos minutos depois eu já me sentia invadida de uma agitação intolerável. Implorei para o médico me deixar sair (ele riu!), menti que não estava mais tonta, ele me deu o atestado, voei pela porta e peguei um táxi.
No carro, achei que o dia lindíssimo me consolaria, mas não me consolou. Percebi que me sentia miserável, um pobre-diabo, separada para sempre do mundo dos mortais. Os objetos que eu tocava e via – a maçaneta da porta, os prédios, a praia, as montanhas – perdiam a densidade e o valor que o cotidiano lhes atribuía, transformando-se em um opaco cenário de pesadelo. Indaguei como tudo ao meu redor parecia vivo, mas eu não conseguia participar dessa vida. A vida, como vêem, passou a ser “essa vida”, um dêitico indicando que, ao apontar para ela, identifico-a como algo fora de mim.
De resto, cheguei em casa e me forcei a dormir durante toda a tarde, e depois a noite inteira. Só me libertei de verdade da sensação macabra dois dias depois, com meus alunos, ao perceber que havia conseguido entrar na vida por completo. Antes disso, o sabor de estar “um pouco” fora me consumia, mas dessa vez eu soube ser paciente – e sabia que Deus estava comigo.
De onde tiro a conclusão: o mero sentir-se fora do mundo é insustentável. Realmente fora do mundo, quero dizer. Sem a sensação de euforia que deve acompanhar alguns estados induzidos por alucinógenos, sem a grogueira de uma bebida, de uma anestesia forte. Estar separado da vida e continuar lúcido equivale, acredito, a morrer e continuar vivo. Podemos nos perguntar por que ainda estamos ali, já que tudo parece ter perdido a capacidade de mostrar-se coerente. Perdemos Deus, pessoas, coisas. Como se rompido para sempre o laço que nos amarra ao mundo e nos proporciona sentido e pertencimento.
Não foi o que aconteceu com Descartes – não que soubéssemos. Ao que me consta, prosseguiu tranqüilamente com sua filosofia, com os cuidados de praxe que a instituição religiosa da época inspirava. Sem implicar-se por inteiro no sistema que criou – como viver permanentemente na dúvida radical? – , teria elaborado para si nada mais que a ficção de se colocar fora do mundo. Tirou daí, acredito, todo um modo de racionalizar a vida que já não corresponde mais à vida, mas é unicamente mental. Ele não sofreu por estar fora da vida, porque realmente não estava. Mas toda a sua construção filosófica se baseia nessa ruptura de estados mentais e emocionais, de lógica e experiência – ruptura que não por acaso caracteriza o subjetivismo reinante nos estudos universitários, hoje, com mais força que nunca.
Toda a filosofia moderna, por assim dizer, é cartesiana, ao desejar um esquema abstrato que proporcione a vertigem de uma gnoseologia total em vez de uma tentativa de conhecimento parcial do mundo e no mundo. Ao comprar a idéia de Descartes, o pensamento moderno quer inaugurar a última e definitiva forma de filosofar, para isso pretendendo-se o filósofo um puro “olho”, independente e isento. Porém, em tudo isso há como que uma brincadeira, uma proposta que poderia talvez ser formulada assim: vamos brincar de nos colocar fora da realidade e imaginar tudo de novo? Vamos dizer que só existe o que a gente pensa que existe? Como brincadeira, isto pode ser feito sem maiores conseqüências, pois continua-se no controle do processo – o real está ali fora, pacientemente à espera. A ficção ganha contornos perigosos quanto mais crê nela o pensador; mas, ainda assim, não há sofrimento em uma ruptura apenas mental com o mundo.
Eu pergunto então: se Descartes tivesse experimentado os efeitos da bromoprida, será que basearia nessa divisão sua filosofia? Se, em um só dia de suas alegres vidas, professores e estudantes universitários que se entusiasmam com a proposta subjetivista tivessem sido jogados por inteiro – não só mentalmente – no abismo de uma separação entre consciência e realidade, será que não correriam de volta assim que possível? Se soubessem o que é estar fora do mundo sem o terem desejado, filósofos e aspirantes a filósofos retornariam com urgência do projeto subjetivista, rogando com humildade a quem detém a chave de todo sentido uma nova chance de um processo de conhecimento do mundo em que não se alienassem de si mesmos.