No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus,
e o Verbo era Deus. (...) E o Verbo se fez carne
e habitou entre nós, cheio de graça e de verdade,
e vimos a sua glória, glória como do unigênito do Pai.
João 1:1 e 1:14
Em grego, o termo original para Verbo é logos, que para os gregos significa palavra, mas também princípio ordenador do que existe. Ao referir-se a Jesus como o logos, o Evangelho de João, no primeiro capítulo, não faz distinção aparente entre a verdade como princípio regulador do mundo e a verdade que está em Cristo, que é Cristo. De modo especial neste Evangelho, estão associadas em Cristo, sem contradição, a objetividade (a verdade como a luz que “ilumina a todos os homens”, em João 1:9) e a subjetividade, na figura humana de Jesus (“o Verbo se fez carne e que habitou entre nós”, em João 1:14). Logo, segundo os cristãos, para um conceito de verdade realmente válido é necessário que as dimensões universal (teoria, abstrações) e particular (experiência individual) estejam intimamente ligadas – como de fato estão, de modo maravilhoso e inédito na história das religiões, na pessoa de Cristo. De onde se conclui que, de todos os adeptos a uma fé ou a uma determinada visão de mundo, os seguidores de Cristo são ou deveriam ser os menos propensos a caírem no engodo da separação entre essas duas dimensões. Proponho-me aqui a examinar se partilhamos da mesma doença separatista, e por quê.
Tal doença reside no fato de que, se temos como conclusão que a verdade é universal e pessoal ao mesmo tempo, quanto mais afastados estão os homens da verdade que é Cristo, mais afastados estão da verdade como um conceito de aplicação geral. Segue-se que, quanto mais distante do transcendente pessoal, menos inteligente e aplicável é uma teoria que pretenda explicar o mundo ou servir de base para o conhecimento do que existe. Aferrados a uma noção por demais generalista de Deus, os inúmeros autores que se valeram da negação da pessoalidade divina para construir suas teorias obtiveram em conseqüência uma dolorosa aridez e uma insustentável dissonância com a realidade. O simplismo geométrico de Kepler e o teísmo de Voltaire (que, não admira, acaba por tornar-se ateu militante) servem de triste exemplo ao que digo.
Mas é o outro lado da moeda meu principal alvo aqui. Como um padrão geral bastante nocivo, e até em contraposição ao racionalismo dos séculos precedentes, a recente história do pensamento moderno engaja-se, desde o século XVIII mas mais fortemente no século XX, em um processo de alegre e irrefletida adesão a uma ênfase personalista, com a manifesta recusa ou aversão a todo princípio de objetividade. No meio acadêmico, tanto na Europa (sobretudo na França) quanto nos Estados Unidos, as áreas humanas o testemunham com muita propriedade; mas é no Brasil que o fenômeno parece ter fincado raízes mais profundas.
Não é novidade que o brasileiro vive imerso na atmosfera de uma insistência quase predominante em um discurso intimista, relacionado a interesses individuais. O Brasil de hoje evita mais que nunca teorias, valores e práticas para o bem comum, acima dos estritos consensos. Já é muito difícil encontrar um autor nosso que se preocupe com questões universais. Mas a igreja evangélica brasileira também não foge à regra, e é aí que chego finalmente ao meu ponto: com raríssimas exceções, temos comunicado nossa fé quase que exclusivamente como a verdade particularizada, como “solução” para as mazelas pessoais de quem nos ouve, enfatizando o encontro pessoal com Cristo – o que faz jus à dimensão pessoal de Deus, com certeza, mas não à verdade em Cristo, universal, que traz luzes sobre o sentido da vida para toda a humanidade.
É assim que o evangélico brasileiro tende a particularizar tanto a mensagem do evangelho que sua mente pode até mesmo se dividir em dois compartimentos estanques: o da verdade da igreja e o da verdade geral. Quando isso ocorre, ele não consegue desafiar a mentira vigente no mundo porque sua fé não tangencia essa mentira, mas se refugia em um lado da mente que crê controlar sua própria vida e apenas isso. A fé serve, nesse caso, não como uma bússola para as ações humanas, para uma filosofia da moral, mas como um estrito regulador da vida particular. Claro que o processo funciona neste âmbito, mas para os homens ele se torna um E.T. cuja fé permanece incomunicável, e nisso ele contribui para a manutenção de um dos principais nós teóricos – se não o principal – da modernidade: a recusa do sentido do geral, conforme apontado pelo filósofo romeno Constantin Noica, terreno fértil para os relativismos de nossa época. Nisso, ele deixa de ser sal e luz, tal como Jesus havia recomendado.
Essa é mais que uma possível explicação para a pouca representatividade intelectual da igreja evangélica brasileira nas grandes questões de hoje: é uma conclamação de urgência para que possamos pôr abaixo o muro conceitual que separa nosso cristianismo da trama intricada das idéias hegemônicas deste mundo, enfrentando-as à luz da verdade – não com o nosso poder, finito, mas com o presente que, segundo o apóstolo Paulo (1Co 2:16), recebemos diretamente de Deus ao nos convertermos: a mente de Cristo, sinal do homem espiritual maduro em nós. Se, de acordo com Paulo, o homem espiritual é apto a “julgar todas as coisas sem ser julgado por ninguém”, é porque fala do que apenas Deus é capaz de transmitir, e que está muito acima das discussões intermináveis sobre diferenças menores entre indivíduos ou denominações. Sejamos luz, pois: acima dos desejos e preocupações pelo que é finito, a igreja precisa redescobrir na prática, no embate com o mundo, a verdadeira dimensão do que já recebeu – a verdade do Evangelho que “ilumina a todos os homens”, transcendendo com vigor a todos os particularismos.