Coletânea
sábado, dezembro 31, 2005
História triste de bailarinos
Eles se viam ao longe e já se amavam. Admiravam o contraste recíproco dos gestos - doces, para a bailarina, viris, para o bailarino - e ansiavam por dançar juntos um dia.
Naquele que seria, finalmente, seu primeiro ensaio com a bailarina, o bailarino, muito nervoso, subiu ao palco percebendo-se de súbito despreparado e sem vigor suficiente para uma dança com ela. Não lhe disse nada, mas levou adiante seus movimentos e intenções de movimentos. A bailarina, no entanto, sentiu a hesitação e a debilidade do parceiro. Diante disso, ela se viu invadida por um ímpeto de indignação e não se furtou a continuar a dança, mas quis intensificá-la lançando-se com fúria na direção do bailarino para que ele a tomasse nos braços e a transportasse pelo ar. Assustado com a força desmedida da parceira em sua direção, o bailarino não pôde erguê-la graciosamente, mas a conteve com as mãos estendidas, interrompendo toda promessa de movimento conjunto. Tão rápido quanto começou, o ensaio estava terminado.
Depois do esforço, a bailarina confessou que não poderia ter agido diferente, pois precisava da firmeza do parceiro para continuar dançando com leveza. Com os dedos machucados, o bailarino prometeu a si mesmo que jamais dançaria com ela novamente. Ela acha que ele poderia tê-la segurado apesar do impulso desmedido; ele crê que ela não poderia ter saltado para ele daquele jeito. Separaram-se sem compreenderem exatamente no que consistira o drama. Ainda se admiram e se amam ao longe, mas já não ousam dançar juntos. Ele ainda esfrega os dedos de nervoso, ela teme ser deixada no chão quando queria voar em seus braços.
sexta-feira, dezembro 16, 2005
Veias, ou: poeminha protestante
Trago em minhas veias o legítimo sangue protestante.
Quando era pequena, meus pais me chamavam “a contestadora”.
Não é um título ruim diante de um mundo apodrecido.
A tradição dos tempos não pode definir as coisas.
Só Deus é; só Ele define.
Seus remidos o seguem humildemente
desprezando as ordens em contrário.
Quem dera eu fosse protestante
mais do que a carne o deixa.
Quem dera dizer não
a tudo que ofende a Deus.
Só Jesus pôde, ao mesmo tempo,
amar e protestarperfeitamente.
Poeminha francês
L’oeil qui écoute
le nez: attendre?
La bouche qui voit
le coeur s’étendre.
O olho que escuta
o nariz: esperar?
A boca que vê
o coração se espraiar.
Espelho?
O escuro me desafiou:
– Quem é você?
Baixei os olhos, de vergonha. Depois chorei. Não sabia responder.
– Como não sabe responder a uma pergunta tão comum? – insistiu ele.
Minhas mãos se engelharam em dor. Me lembrei de várias pessoas. Parecia tão fácil falar de si! Invejava-as. Eu, que tinha de sair carregando um belo espelho à minha frente: “Como me vês?” Falava, falava, mas para me conhecer. “Escrevo para me conhecer”, dissera a alguém.
– Escrevo para me conhecer – redargüi ao escuro, ganhando forças.
Ele me olhou como a uma criancinha petulante. Decerto, não me dava créditos. Ou queria me desmerecer. Sorriu, e seu sorriso soou uma gargalhada cáustica.
– Filhinha – disse –, você terá um longo tempo para isto!
Silenciou, e eu o perdi.
Eco
Te vejo distante no eco
Do corpo, meu corpo, lembrança
Criança que fui, sendo filha
Do sonho, da luz que emitiste
E eu te perdi em meus passos,
Cansaço, deitada na relva
Brilhante que a lua aclarava
E eu estava cega demais
Te vendo distante no eco
Do sonho, deitada na estrada
Cansaço que fui, sendo filha
Do corpo, teu corpo, lembrança
Brilhante da luz que emitiste
E eu me perdi em teus passos,
Criança que a lua aclarava
E eu estava cega demais
Te vendo distante no eco...
sexta-feira, dezembro 02, 2005
Apresentação
Desde criança vivo às voltas com textos. No início, aplicava-me em desenhos a caneta para compor histórias em quadrinhos: não tinha muita paciência para desenhar, mas adorava elaborar os diálogos. A paixão pela literatura ganhou força quando descobri na casa da minha avó os livros infantis do Monteiro Lobato, todos já embolorados, que haviam pertencido a meu pai. Apeguei-me com prazer àquelas páginas com um cheiro todo peculiar, às poucas e lindíssimas ilustrações em nanquim de André Le Blanc que retratavam os personagens do Sítio do Picapau Amarelo, àquela ortografia já ultrapassada, com as proparoxítonas sem acentos. Gostava especialmente de Gramática da Emília, O saci, Caçadas de Pedrinho, Viagem ao céu, A chave do tamanho e Os doze trabalhos de Hércules, que lia repetidas vezes. Quando ganhei as obras completas em um só volume, aos 10 anos, já havia lido quase tudo.
Aos 11 anos descobri na escola o francês, e muito entusiasmada pedi a meu pai que me pusesse na Aliança Francesa, na esquina de casa. Segui todo o percurso até terminar o Nancy (formação de professores), em 1996. Depois de vários anos ensinando o idioma, hoje sou uma das professoras da instituição que me formou, desde 2004. Meu início profissional, porém, não foi na área de ensino: confiante nas minhas habilidades em português, sempre desejei que meu primeiro emprego fosse o de revisora, o que Deus atendeu bem cedo, aos 18 anos. Com a ajuda da mãe de um amigo - que confiou em mim e se viu às voltas com um verdadeiro carrapato agarrado às suas saias para que me indicasse à editora - , me voilà funcionária da Forense, no centro do Rio. São portanto 16 anos de trabalhos de revisão, a maior parte deles como autônoma, trabalhando regularmente para a Editora Record e outras empresas. Um tanto esporádicas, as traduções do francês serão em breve, a partir de agora, mais freqüentes na minha vida.
Foi por causa de meu trabalho como revisora que, depois de duas tentativas frustradas de cursar Psicologia e Jornalismo (cujas aulas não agüentava), decidi fazer Letras por puro prazer, o que deu certo: estou terminando o segundo ano do doutorado em Literatura Francesa, pesquisando o crítico e poeta contemporâneo Henri Meschonnic e descendo o verbo na corrente pós-estruturalista... Há alguns anos detectei, não só na Letras, mas nas áreas de humanas em geral um interesse ativo na destruição dos valores judaico-cristãos através de ataques à razão - um processo que se inicia com a demonização da filosofia clássica e opõe ao racionalismo de Descartes um subjetivismo não menos esquizofrênico, que a longo prazo torna seus partidários alheios à realidade e ao conhecimento do mundo.
Dois amigos autores foram fundamentais na solidificação e ampliação desses insights, estimulando-me e aliviando grandemente minha solidão: James Houston e Olavo de Carvalho. Meu interesse atual é o belíssimo trabalho do autor cristão René Girard, cuja obra pretendo estudar muito séria e profundamente depois do doutorado. Sou cristã evangélica há dez anos e nunca tinha visto um estudioso encarnar tão profundamente o epíteto de intelectual cristão: Girard coloca o sacrifício de Jesus no coração de seu edifício teórico, o que o torna infinitamente valioso para mim. Mas, em meio a todas essas atividades de ensino, revisão, tradução e pesquisa, sempre digo a todos os meus amigos: desde pequena vejo-me como escritora, e isso me preenche perfeitamente bem. Escrever é o que sei fazer de melhor. Também gosto de cantar e tenho uma boa queda para a música, mas o manejo das palavras é constitutivo em mim. Não são raras as vezes em que me pego escrevendo mentalmente, em todos os lugares por onde passo. Encontrei no blog um modo maravilhoso de exercer essa obsessão - e gosto o suficiente de Nelson Rodrigues a ponto de me identificar com ele no amor à escrita, que não deixa de ser uma das expressões do amor à verdade.
Pitorescos erros de tradução
Em revisões minhas:
Suficientemente Bem
Revisei a biografia de um escritor francês para uma editora. Como era apenas revisão simples do português, eu não tinha o original francês em mãos. Havia nesse trabalho algo incrível: em um trecho sobre a infância do escritor e suas notas na escola, dizia-se que ele tinha sido um aluno nada brilhante, muito pelo contrário – mas logo em seguida o autor se contradizia, afirmando como um exemplo dessa falta de brilhantismo que o biografado tinha obtido um "muito bom" em uma das matérias. Tive que correr à editora para consultar o original e as provas que o copidesque havia corrigido. Estava lá a genealogia completa do erro: Assez Bien tinha sido traduzido por "Suficientemente Bem", termo esquisito e pesadíssimo, substituído sem pudores pelo copidesque por "Muito Bom". No entanto, Assez Bien é uma menção escolar: assim como Excellent corresponderia ao nosso Excelente, Très bien a Muito Bom e Bien a Bom, Assez Bien – literalmente, "Suficientemente Bem" – só pode ser traduzido pelo nosso "Regular".
O sacrifício da atriz
Era a revisão de um livrinho bobinho sobre as filmagens do Titanic. Há a descrição da cena em que Rose (Kate Winslet) nada desesperadamente pelo interior do navio inundado, procurando por Leonardo Di Caprio. No original em francês, dizia-se que Kate quase se afogou para fazer a cena (elle a failli se noyer), mas o tradutor confundiu o verbo faillir com o verbo falloir ("ser necessário") e compôs a pérola do nonsense "ela teve que se afogar" – sugerindo talvez que foi necessário o sacrifício da vida da atriz para a perfeição da cena...
Pata Daisy
Em todo o livro, o tradutor cismou que Daisy Duck era "Pata Daisy", quando na verdade trata-se do nome em inglês para a namorada do Pato Donald, Margarida. Imagino que, com essa falta de atenção, o mesmo tradutor transformaria o Pateta (Goofy) em algo como "Bobinho"...
Enviados por amigos:
Cartaz em um quarto de hotel, Moscou:
If this is your first visit to the USSR, you are welcome to it.
O que significa: "...pode ficar com a União Soviética, nós não a queremos..."
Em um hotel japonês:
You are invited to take advantage of the chambermaid. ("Sinta-se à vontade para abusar da moça da limpeza!")
Em um hotel mexicano:
The water in this hotel is guaranteed to be clean. Personally passed by the manager. Só que pass water significa “urinar”!
Uma marca americana de molho de churrasco chamada Big John em inglês foi vendida como Gros Jos no Quebec – que significa "peitões (de mulher)".
Quando o Papa foi a Miami, alguém estava vendendo camisetas em espanhol com a inscrição "Vi la papa" em vez de "Vi al papa". A segunda frase quer dizer "Vi o Papa", e a primeira "Vi a batata".
Nas poltronas de uma companhia aérea há a inscrição "Braniff seats you in leather" (literalmente "Braniff senta você em couro", que bem adaptado seria algo como "As poltronas da Braniff são em couro"). Uma outra companhia traduziu para o espanhol como "Braniff le sienta en cuero" – mas em espanhol, en cuero significa "pelado"! (Já imaginou uma tradução literal para o português? Poderia ficar bem pior: "Braniff lhe senta o couro"...)
A sueca Electrolux anunciou seus aspiradores nos EUA com o slogan "Nothing sucks like an Electrolux", que tem dois sentidos pouco recomendáveis: "Nada chupa como..." e "Nada é tão nojento como...".
Publicados em revista
Fonte: Superinteressante, outubro de 2002
Moça! Moça!
Nick Marshall (Mel Gibson), protagonista do filme "Do que as mulheres gostam”, assiste a um jogo de basquete pela TV. Um dos jogadores se prepara para arremessar a bola e as palavras de Nick aparecem na legenda: "Moça, moça, moça!"
Moça? Na verdade, ele torcia: "Erra, erra, erra" (miss, miss, miss). Quem acabou errando foi o sujeito que fez a legenda para a versão brasileira.
Torrada!
Let's make a toast significa "vamos fazer um brinde", mas, segundo a tradutora Raquel Elimar, em muitas legendas aparece assim: "Vamos fazer uma torrada." Toast é uma das tantas palavras inglesas com dois significados. Outro erro comum envolve o verbo inglês pretend (fingir), que quase sempre vira "pretender". O livro The Physician ("o médico") foi traduzido para O Físico (na verdade, "físico" é physicist).
Motorista de disco
O tradutor Flávio Steffen lembra que "motorista de disco" entrou no lugar de "unidade de disco" na tradução de disk drive em um dos primeiros livros de informática do Brasil. Motorista, em inglês, é driver.
Arenque vermelho
Red herring é uma expressão com o sentido de pista falsa, disfarce, mas pouca gente sabe disso. Ela é sempre traduzida literalmente para "arenque vermelho". Como em "o cálcio do leite é, de fato, um arenque vermelho", em tradução virtual do livro Fit for Life, Heads & Tails, Diet for a New America.
Dinheiro na jogada
Há mal-entendidos que podem causar prejuízos astronômicos. Um deles, segundo o tradutor Francis Aubert, aconteceu com uma empresa brasileira que tentou comprar uma enorme carga chinesa de feijão preto. Só quando o navio chegou ao Brasil os empresários perceberam que o que haviam comprado era um tipo de soja. Como a negociação foi feita em inglês – língua estrangeira para os dois lados – , as empresas se confundiram com a palavra bean, que quer dizer tanto "feijão" quanto "grão".
O general Will
O pior de todos os desacertos já cometidos em uma tradução para o português brasileiro é tido como mito para a maioria dos tradutores. Mas ele está lá, no livro A teoria política do individualismo possessivo: de Hobbes até Locke. A expressão inglesa the general will, em vez de significar "a vontade geral", virou "o general Will". Resultado? Quem decidia as coisas em algumas passagens da obra não era a vontade geral, mas o poderosíssimo general Will...
Gostou? Tem mais no Orkut, na divertida comunidade Traduções Tenebrosas.
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